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Entrevista com Felipe de Carvalho sobre acesso a tecnologias, medicamentos e vacinas contra a Covid

Em meio a atual pandemia provocada pela COVID-19, muito tem se falado sobre os medicamentos e vacinas capazes de prevenir e combater a doença em questão. Nos últimos 2 anos, diversos tratamentos e fármacos foram estudados e, mais

recentemente, avanços têm sido observados no enfrentamento farmacológico da Covid-19.


Na atualidade, já existem medicamentos comprovadamente eficazes no tratamento da doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, alguns deles sendo, inclusive, recomendados pela Organização Mundial da Saúde, a OMS. Nesse contexto, é possível que se pense que os problemas relacionados à pandemia tendem a serem minimizados mais rapidamente, contudo, a realidade se apresenta mais complicada que a teoria.


Com a ampliação da aplicação de imunizantes e medicamentos considerados eficazes, a epidemia global vivida tende a tomar novos rumos em países ricos e desenvolvidos, porém, nos países pobres, uma outra pandemia, mais antiga e possivelmente mais letal, começa a ser evidenciada novamente: a da desigualdade. E as perguntas que permanecem são as seguintes: de que adianta ter medicamentos para tratar uma doença se as pessoas não podem usá-los, ou melhor, não podem pagar por eles? Porque, mesmo podendo salvar vidas, os medicamentos eficazes não são disponibilizados amplamente? O que está acontecendo?


E para entender essas e outras perguntas, recebemos aqui Felipe de Carvalho, ele que é Jornalista, Mestre em Economia Política Internacional, Ativista em Saúde, com de 10 anos de experiência profissional em advocacy pelo interesse público,

campanhas de comunicação, litígio estratégico, análise de políticas públicas, gestão de projetos, treinamentos e palestras.


Observium: Olá, Felipe! Seja muito bem-vindo!


Felipe: Boa tarde Gustavo! Queria agradecer imensamente o convite, é uma alegria participar desse diálogo com você! Queria também dar uma boa tarde a todos os ouvintes que estão nos acompanhando nesse tema tão importante.


Observium: Começando a nossa conversa, gostaria perguntar o seguinte: O surgimento de novas tecnologias, medicamentos e tratamentos contra a COVID-19, ao seu ver, necessariamente, são capazes de mudar os rumos da pandemia em todo o mundo? Ou seja, é possível que a situação pandêmica tenha uma melhora uniforme e global?


Felipe: Essa pergunta é muito interessante , porque, no fundo, a gente precisa entender que as tecnologias de forma isolada não resolvem, elas não são suficientes para resolver nenhuma questão de saúde pública. Claro que elas são fundamentais, elas são uma peça chave, e é importante o processo de inovação, toda a lógica por trás do conhecimento, que permite que a gente avance no combate à diversas doenças. E para qualquer pandemia, para qualquer doença que a gente esteja falando, é sempre importante lembrar que não basta uma tecnologia. A gente precisa ter imunização, a gente também precisa ter diagnóstico acessível, regulação, tratamento disponíveis, estratégias de tratamento.


As tecnologias em si precisam também de políticas inclusivas, estar em um escopo de estratégias que realmente foquem em alcançar principalmente as populações mais excluídas, principalmente os grupos que estão à margem do sistema de saúde para que a gente tenha uma resposta de fato universal. Então eu diria que as tecnologias isoladas sem a aplicação de princípios simples de saúde pública como, universalidade, integralidade, elas não são suficientes, elas precisam estar num escopo de um olhar mais amplo para que a gente tenha realmente uma abordagem que vá aonde as pessoas que estão mais afetadas estão, que pense em adaptações e estratégias que envolvam as comunidades, por exemplo, no diagnóstico, na informação, que é sobre prevenção e saúde. Então, tem uma série de camadas que vem junto e que a gente precisa estar muito atento a isso também.


Por isso que nesse momento a maioria das organizações da sociedade civil que estão contribuindo com a resposta à Covid-19 tem batido muito nessa tecla de que, agora que a gente tem tratamentos comprovadamente eficazes, precisamos de estratégias de testagem e tratamento que os países implementem, porque é isso que vai garantir um controle mais efetivo da doença, vai permitir que a gente volte a normalidade, de uma maneira segura, de uma maneira realmente condizente com a gravidade dessa situação. A gente precisa lembrar que esse é um vírus que foi descoberto muito recentemente…ele é pouco conhecido ainda, então essa é ainda uma doença bastante imprevisível, quando a gente pensa nas variantes, nas novas ondas que podem surgir, então realmente é um tema pra gente estar sempre alerta e não entrar nesse tipo de narrativa de que o problema está resolvido, de que a Covid-19 acabou, porque nenhuma doença desaparece assim da noite pro dia, elas precisam de monitoramento e controle constantes e estratégias muito efetivas de diagnóstico, de imunização…quando a gente tem vacinas disponíveis para algumas outras doenças e tratamento acessível para todos, isso faz toda a diferença.


Observium: Falando agora sobre um medicamento que teve uso aprovado recentemente pela OMS, o Baricitinibe. Esse medicamento é “fortemente recomendado”, de acordo com a OMS, para pacientes com casos de Covid-19 graves ou críticos, já hospitalizados. Na Índia o tratamento de 14 dias com Baricitinibe sai por 30 reais, enquanto no Brasil o custo do medicamento é de aproximadamente 5000 reais para o mesmo período. O que faz com que haja tal diferença de valores?


Felipe: Olha, esse é um tema ao qual eu tenho mais me dedicado nos últimos anos. É o que faz com que haja essas barreiras de acesso aos tratamentos e o preço normalmente é uma das principais barreiras. A gente vê que o mercado

farmacêutico, ele está organizado de uma maneira que, infelizmente, gera muita exclusão e muitas barreiras de acesso, muitas vezes num ponto em que países não conseguem comprar determinados tratamentos para oferecer no seu sistema de saúde ou então situações em que as pessoas não conseguem pagar do próprio bolso para um tratamento que é muito necessário.


Infelizmente, esse tipo de discrepância de preço que você acabou de mencionar, em primeiro lugar, não é uma coisa nova. A gente já viu isso acontecer com outras doenças, isso continua acontecendo e com a Covid-19 a situação se repetiu, apesar de toda a coordenação que houve a nível global de tentar fazer as coisas diferentes durante a pandemia de Covid-19. A gente vê que prevaleceu a lógica das grandes empresas farmacêuticas, que muitas vezes têm um interesse em vender caro pros países mais ricos do que vender em ampla escala para todos os países.


Há realmente um controle das tecnologias, um controle sobre esses conhecimentos por trás dos medicamentos de uma maneira para criar monopólios e um monopólio é a situação que a gente tem quando apenas uma empresa tem o direito de fornecer um determinado produto. Quando isso acontece com um produto de saúde a gente fica numa situação bastante grave por dois motivos: primeiro porque quando uma empresa tem um monopólio a gente tem sempre um risco muito grande de passar por uma situação de escassez porque muitas vezes uma empresa sozinha não consegue dar conta de uma demanda, como foi no caso da Covid-19, que é uma demanda global.


Em segundo lugar é justamente o preço, a empresa sozinha sem concorrentes, ela tem uma certa liberdade para definir o preço que ela quiser para aquele produto. Quem conseguir pagar vai ter, quem não conseguir vai ficar sem, então, muitas vezes as empresas buscam esse poder de monopólio para conseguir ter esse tipo de vantagem competitiva.


É claro que isso é uma posição que garante a essas grandes empresas uma lucratividade sem paralelo, o setor farmacêutico é, ainda hoje, o setor com as maiores margens de lucro dentre todos os setores da economia, superando o setor de petróleo e gás, bancos, todos os outros setores que vocês possam imaginar, então isso é muito graças a essa dinâmica que a gente observa e o outro lado da moeda são justamente os países que estão tentando comprar esse medicamento e não conseguem porque o preço é alto demais e a população sofre com isso, a gente viu, está vendo na verdade.


A situação está prestes a mudar mas aqui no SUS, praticamente nenhum dos medicamentos recomendados para Covid-19 está disponível ainda, então as pessoas que usam o sistema público não tem essa opção, as prateleiras estão vazias de medicamentos que poderiam servir para tratar pessoas que estão em estado grave ou na fase mais inicial da doença. Agora está se começando um processo de incorporação mas a gente ainda está… a gente passou aí momentos muito duros, ondas, principalmente agora, a mais recente de Ômicron no início desse ano, onde a gente chegou de novo na média de mil mortes por dia e as prateleiras do SUS vazias de tratamentos que já estão disponíveis e poderiam ser usados pra salvar vidas.


Essa diferença de preço, ela é consequência dessa situação de monopólio e esses monopólios, eles existem normalmente por meio de patenteamento, ou seja, quando uma empresa consegue obter uma patente sobre um medicamento, ela constrói essa situação de monopólio e aí ela consegue cobrar cinco mil reais de um país pra fornecer um tratamento que

custa muito menos do que isso pra produzir, que muitas vezes teve o seu desenvolvimento bancado por investimento público.


Então, muitas vezes todas as justificativas que a empresa apresenta pra dizer que o preço é alto, não se verificam, não tem comprovação, mas como ela tem a patente, ela tem o poder de monopólio e ela pode definir os preços que ela quiser. O fato de que a gente tem esse mesmo tratamento por trinta reais em países com a Índia, como Bangladesh é porque lá o patenteamento não aconteceu ou então o período de monopólio já terminou. Nesses contextos a gente pode ter a produção de genéricos e o preço tende a cair muito.


É uma situação interessante, porque quando a gente tem produção de genérico a gente começa a ver, realmente, qual é o custo de produção de determinados produtos, porque as empresas multinacionais não costumam ser muito transparentes sobre isso mas quando a gente vê que esse tratamento que custa cinco mil reais no Brasil, custa trinta reais na Índia, é porque o custo de produção dele é muito baixo, os ingredientes são baratos, o custo de produção é barato, então não há razão pra um preço tão abusivo de cinco mil reais. Então essa situação se explica muito por essa dinâmica do mercado farmacêutico, é bastante cruel e prejudica muito os objetivos de saúde pública que a gente tem que é de superar determinadas emergências, de oferecer tratamento e imunização para todo mundo.


Observium: Quais medidas concretas os governos podem tomar para impedir que as patentes limitem o acesso aos medicamentos, especialmente àqueles relacionados ao tratamento da COVID-19, como o Baricitinibe?


Felipe: Perfeito! Bom, existem medidas legais, sim, que os governos podem tomar. Só para contextualizar um pouco, essas regras que hoje a gente tem no mundo de propriedade intelectual, só pra ligar uma coisa com a outra, a patente é uma forma de propriedade intelectual. Ela é um direito de propriedade intelectual e como o nome já diz, “propriedade intelectual” é uma propriedade sobre o conhecimento, sobre bens intangíveis, ideias, fórmulas, conhecimento.


As regras que a gente tem hoje de propriedade intelectual foram negociadas durante a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), foi um momento em que houve uma grande mudança, porque antes desse marco, que foi em torno de 94, 95, os países tinham a liberdade de decidir em que campos existiriam patentes, em que campos não existiriam, então muitos países, como era o caso do Brasil, por exemplo, não reconheciam patentes para medicamentos, para alimentos, para bens essenciais… mas a partir do momento que houve essa negociação e a criação da OMC, os países tiveram que aceitar regras comuns e uma delas é o patenteamento em todas as áreas. Ou seja, nenhum país poderia mais excluir um determinado campo tecnológico do patenteamento.


Na prática, todos os países passaram a ser obrigados a reconhecer patentes para medicamentos e foi aí que as grandes empresas farmacêuticas tiveram mais um salto de concentração de mercado, de poder, de lucratividade…era do interesse delas que esse acordo fosse assinado, mas ao mesmo tempo os países também negociaram o que a gente chama de flexibilidade de saúde pública.


Os governos começaram a perceber que essa era uma situação muito arriscada, muito perigosa, que aumentar a quantidade de monopólio sobre bens essenciais de saúde poderia resultar em uma situação em que um governo não conseguisse salvar a sua população ou oferecer tratamento para sua população, então, dentro desse mesmo acordo internacional, tem medidas que podem ser adotadas para proteger o interesse público, em particular a saúde pública.


Cada país tem que traduzir na sua própria lei nacional e no Brasil a gente tem alguns mecanismos, o mais importante eu diria na verdade é o mecanismo preventivo, que é você examinar os pedidos de patente de uma maneira bastante rigorosa e isso é algo que todos os países têm o direito de fazer. Cada país define como vai examinar e muitas vezes os pedidos de patentes não tem fundamento, são conhecimentos que já estão em domínio público, tem toda uma série de critérios que os países tem que ter para impedir justamente que haja um patenteamento excessivo e imerecido de produtos e conhecimentos que já são de amplo conhecimento geral.


Essa é a forma mais efetiva porque você previne que haja esse problema do monopólio sobre medicamentos. Também existe uma estratégia para um momento em que o monopólio já existe e esse é o licenciamento compulsório, que muita gente chama de quebra de patente. Não é um termo muito preciso, porque na verdade quando se faz um licenciamento compulsório a patente continua existindo. O que muda é que é como se o governo autorizasse que outros produtores pudessem também usar aquele conhecimento, pudessem também fabricar aquele mesmo medicamento, então com a licença compulsória a gente abre espaço para produção de medicamentos genéricos, ou para a importação de genéricos.


No entanto, a empresa dona da patente continua recebendo royalties, continua tendo alguns benefícios, algumas vantagens, então não há uma quebra da patente mas sim, esse poder de monopólio é relativizado durante um período e isso ajuda que os países consigam abastecer o seu sistema de saúde de medicamentos essenciais.


Então, para o Baricitinibe, para outros medicamentos importantes para

Covid-19, essa é uma medida importante. Inclusive alguns países já usaram a licença

compulsória. Israel usou a licença compulsória, foi o primeiro país já em 2020. Usou

para um medicamento que ainda estava em teste, mas usou. A Rússia usou a

licença compulsória, a Indonésia usou…tudo isso no contexto da covid-19. E se a

gente olhar para outras doenças, como HIV Aids, câncer, a Índia já usou licença

compulsória, o Brasil já usou e não é uma coisa só de países em desenvolvimento,

os países mais ricos, Estados Unidos, Canadá, vários países europeus ao longo da

história usaram também licença compulsória justamente pra tentar equilibrar o

sistema, porque. quando você dá um monopólio para empresas, você está

favorecendo o interesse privado, mas o sistema de patentes também precisa

favorecer o interesse público e esse tipo de estratégia é justamente pensando nisso.


Observium: E a sociedade civil, qual papel pode desempenhar nesse

panorama?


Felipe: Olha, muita coisa, viu!? Pode não parecer, mas a gente tem um papel muito

importante. Primeiro porque o que é observado em vários contextos, não só no

Brasil, é que a licença compulsória, por exemplo, só acontece quando há, de certa

forma, uma mobilização popular, quando há uma certa pressão política, então é

uma medida que obviamente as empresas farmacêuticas não gostam quando

acontece e para os governos se convencerem de que é necessária, de que é

importante, muitas vezes os movimentos sociais, de saúde, a população em geral,

as pessoas afetadas pelas doenças precisam levantar sua voz, precisam cobrar do

governo o uso dessas medidas, que existem para proteger a saúde pública. Então

essa pressão popular é fundamental.


Aqui no Brasil a gente teve o uso da licença

compulsória em 2007 para um medicamento de HIV/Aids e foram alguns anos de

mobilização até chegar num ponto em que o governo se convenceu e fez o decreto

da licença compulsória. Então, mobilização e pressão pública fazem a diferença

para que essas leis que existem, esse direito que os países têm, seja usado em

benefício da população. Não deveria ser assim, mas a gente entende que muita

coisa precisa de uma certa luta política e as pessoas estarem informadas e

cobrando para que de fato seja aplicado. Por mais que as necessidades sejam

óbvias, quando a gente tá numa crise de saúde deveria ser muito óbvio o uso

dessas medidas, mas a experiência mostra que normalmente precisa de um

empurrão da sociedade para que os governos ajam.


A segunda coisa é que, em

relação ao exame de patentes, a gente tem no Brasil um mecanismo em que

qualquer pessoa, qualquer organização, pode apresentar argumentos para o

escritório de patentes, porque as patentes são examinadas aqui no Brasil no INPI

(Instituto Nacional de Propriedade Industrial). Quando uma empresa farmacêutica

faz um pedido de patente, ela apresenta lá o que ela quer proteger. Só ela vai ter

controle de toda a argumentação em torno daquele pedido.


O órgão INPI vai

analisar. Tem técnicos, especialistas que vão analisar se aquele pedido cumpre os

pré-requisitos ou não, mas durante esse processo qualquer organização, qualquer

cidadão pode também apresentar documentos e dizer “olha, essa patente é

imerecida, esse ponto aqui não faz sentido…”, enfim, claro que tem que ter uma

certa preparação técnica para fazer esse tipo de argumentação, mas é um trabalho

que várias organizações da sociedade civil aqui do Brasil, organização de pessoas

vivendo com HIV/Aids, com hepatite.


Inclusive, com o Observium a gente fez uma

oficina no ano passado para estudantes de vários cursos, mas também de farmácia,

mostrando como é que faz esse processo, como é que se pode criar o que a gente

chama de “oposição à patente”.


É como se fosse uma argumentação contrária à

aprovação de uma patente e o argumento, claro, é pensando também na saúde

pública, dizendo que é um medicamento importante, que o patenteamento pode

prejudicar a oferta no SUS. Mas tem que ter uma argumentação mais técnica, mais

químico-farmacêutica para tentar desconstruir os argumentos da empresa que fez

aquele pedido de patente. Eu particularmente acho um trabalho super empolgante e

é uma forma da gente participar do sistema de patente por dentro, realmente se

apropriando das informações e se envolvendo como cidadãos, como organizações

interessadas em defender o interesse público. A gente provavelmente, esse ano, vai

ter outra oficina desse tipo no Observium, então já fica aí o convite. Quem quiser

participar, é muito bacana sim porque é uma capacitação e com base nisso a gente

pode olhar para vários medicamentos e aplicar essa estratégia.


Observium: Em meio à pandemia vigente, existem dados relacionados a

quantidades de vidas que poderiam ser salvas caso a quebra de patentes de

vacinas e alguns medicamentos fosse acelerada ou já tivesse ocorrido?


Felipe: Esse é um dado que a gente tem que estar muito ligado nessa correlação.

Justamente esse ponto que a gente precisa estar muito atento: como é que essa

situação de exclusividade sobre determinados produtos de saúde gera exclusão e

como isso gera morte. Muitas vezes esse dado é difícil de se calcular. Primeiro

porque a pandemia é dinâmica em relação aos dados epidemiológicos. Tem todo

um processo que leva um tempo entre um medicamento ser estudado, aprovado e

disponibilizado, então muitas vezes é difícil fazer essa correlação de maneira tão

precisa. Mas eu posso citar para você duas informações que ajudam a ter uma

dimensão sobre quantas vidas estão sendo perdidas porque não temos acesso às

vacinas e aos medicamentos.


O primeiro é um dado de um grupo de pesquisa da

USP, que é o Grupo Direito e Pobreza. O estudo, do início de 2021, apontou que

caso, naquela época, tivesse já ocorrido o maior compartilhamento de informações

sobre a produção de vacinas e a gente tivesse o maior fornecimento dessas vacinas

de mRNA, que é um tipo específico de vacina, como no caso da Pfizer e da

Moderna, teríamos conseguido evitar, no Brasil, mais de 1000 mortes por dia no

primeiro semestre de 2021.


Isso foi um dado que eles produziram com uma

metodologia específica. Quem quiser pode ver o estudo, que está disponível online,

se você pesquisar por “Vacina”, “Grupo direito e Pobreza”, “Estudo”, “Covid-19”. No

final de 2020 houve uma proposta, a nível internacional da OMC, de suspender

globalmente alguns direitos de propriedade intelectual, como patentes, segredos

industriais…justamente para facilitar o compartilhamento do conhecimento e com

isso a expectativa era de que mais países e mais produtores conseguissem fazer

vacinas. E essas de mRNA, por exemplo, apesar de ser uma tecnologia mais nova,

as unidades de fabricação que são necessárias são mais simples, são vacinas mais

fáceis de se adaptar, então para muitas empresas ao redor do mundo, seria viável

aprender como fazer e rapidamente iniciar uma produção.


Em cima dessa

possibilidade, o grupo fez esse cálculo que mostrou que, só no Brasil, se tivesse tido

uma distribuição melhor desse tipo de vacinas logo no início poderiam ter sido

evitadas nesses momentos graves que o Brasil vivenciou mais de 1000 mortes por

dia com essa iniciativa. Como consequência dessa situação de patenteamentos,

controle, escassez, preços altos, a gente teve muito mais mortes do que se

estivéssemos num contexto de conhecimento aberto e compartilhamento de

informações.


Outro dado que a gente pode…aí não vou dar números tão exatos,

porque não é um estudo, nem nada disso, mas para os medicamentos agora, como

o Baricitinibe, eles começaram a ser aprovados a níveis internacionais ainda no final

de 2021, então, se, no Brasil, já tivéssemos tomado iniciativas como o licenciamento

compulsório…esses tipos de estratégias para comprar os genéricos, talvez a gente

tivesse conseguido oferecer no Brasil já, muito mais cedo e durante a crise da

Ômicron, que a gente voltou ao patamar de 1000 mortes por dia, a gente poderia ter

prevenido muitas mortes se a gente já tivesse os tratamentos sendo usados no

Brasil.


Mas até hoje, como eu falei, esses tratamentos ainda estão em processo de

incorporação, de discussão, de negociação…então a gente está bastante atrasado

na oferta de tratamentos no Brasil e uma das razões é isso, são poucas as

empresas que fornecem, Brasil tá proibido de comprar genéricos…tem uma série de

limitações que sem dúvida impactaram muitas vidas durante essa crise que a gente

viveu nessa onda de Ômicron. Se já tivéssemos medicamentos…são medicamentos

que, pra quem está internado, oferecem cerca de 40% de redução da chance de

morte, então poderíamos ter tido 40% menos mortes durante essa última onda se a

gente tivesse com esses medicamentos já disponíveis.


Observium: Em que estágio, em relação à legislação sobre patentes, o Brasil

se encontra?


Felipe: Bom, de certa forma, o Brasil, durante 2020 e 2021 iniciou um processo bem

pioneiro de revisão da lei de patentes. Esse processo ainda não está concluído, está

na última etapa atualmente, mas é algo que pode, inclusive, tornar-se uma

referência à nível internacional. É uma atualização da lei de patentes, tendo em

vista o interesse público.


A gente viu, de fato, que o congresso nacional se

interessou muito pelo tema de acesso aos medicamentos e às vacinas, então a

gente teve, entre 2020 e 2021, 18 projetos de lei só sobre o tema do licenciamento

compulsório, que é essa medida para que os monopólios não impactem na saúde

pública, para colocar em termos simples.


Não é acabar com as patentes ou com os

esquemas de patentes, é achar um equilíbrio para que as empresas que têm o

monopólio não acabem criando um problema de saúde pública. Basicamente isso

que se busca.


No congresso, a gente viu uma movimentação muito forte para tentar

encontrar melhorias em como fazer isso. Teve um projeto de lei em particular, o 12,

proposto no senado, que foi aprovado, ao longo de 2021, em uma votação muito

expressiva no senado, foram 55 senadores que votaram a favor desse projeto.

Depois ele foi para a câmara dos deputados e aí a votação foi mais expressiva

ainda, tendo 425 deputados votando a favor e depois voltou ao senado e tiveram 61

votos a favor. Esse projeto de lei 12 é muito interessante porque ele cria formas de

tornar a licença compulsória mais eficiente durante emergências de saúde. Nas

experiências passadas que a gente teve, os resultados da licença compulsória é

sempre muito bom, mas às vezes a operacionalização era complicada, dependente

de um decreto da presidência e de algumas negociações.


Com esse projeto

de lei foram criados alguns prazos, ou seja, a partir do momento em que você tem

uma emergência declarada, em 30 dias já tem que ter uma lista de produtos

essenciais, que servem para combater aquela emergência e logo depois você já

avança para o licenciamento compulsório de todas essas tecnologias, então não é

uma por uma, não é caso a caso…você já faz um bloco.


Tem um processo também

de participação da sociedade. Quando essa lista é produzida as instituições

acadêmicas, os grupos da sociedade civil, eles podem contribuir, eles são

consultados, então tem uma democratização também do processo, que é muito

bacana.


E quando a licença compulsória é de fato implementada, os produtos que

forem definidos tem também toda uma especificidade que antes não tinha de que

conhecimentos precisam ser compartilhados. Porque, muitas vezes, para uma

empresa conseguir desenvolver uma versão genérica, ela precisa de um pacote de

informações que nem sempre estão disponíveis só na patente. Então, quando a

gente libera a informação da patente, ela deveria ser o suficiente mas muitas vezes

não é, porque existem segredos industriais, existem linhas celulares específicas que

você precisa saber quais são…então nesse projeto de lei novo tem também ali as

responsabilidades das empresas de compartilhar todo o conhecimento necessário

para que a gente, de fato, amplie a produção do medicamento e tenha acesso para

todo mundo.


Então, ela é muito equilibrada, muito bem feita, tiveram muitas

consultas em torno dela e tem uma aprovação expressiva no congresso e ela

inclusive foi sancionada em setembro do ano passado pela presidência da

república. O problema é que durante a sanção houve a proposta de alguns vetos

por parte da presidência, então alguns trechos importantes foram vetados e esses

trechos atacam justamente esses pontos que eu falei, que são a clareza dos prazos,

quando que cada etapa tem que ser feita…essa clareza também de quais

informações precisam ser compartilhadas, todas essas partes que são cruciais

estão dentro dos métodos e agora o que a gente está esperando é que o congresso

derrube esses vetos, para que a lei volte ao seu formato original e seja

implementada e sem dúvidas vai trazer muitos benefícios para a população

brasileira em questão de acesso à saúde, mas também para o governo, porque é

uma lei pensando em gerar economias, em gerar melhores negociações de preço.


Tudo isso contribui para a sustentabilidade do SUS, que é um interesse da

população, mas também do próprio governo, no sentido de gerar economias então a

gente tem aguardado, mas volta e meia o congresso tem adiado a discussão desse

projeto, A gente está aí já há vários meses esperando um resultado dessa

discussão. Mas o Brasil realmente fez uma movimentação bastante interessante,

até no contexto global, onde todos os países estão pensando em como melhorar as

leis, como garantir melhor a defesa do interesse público e o Brasil trouxe essa essa

legislação que é bastante promissora.


Observium: No Brasil, existem outros remédios que poderiam salvar vidas

mas ainda são extremamente inacessíveis no que tange ao valor comercial?

Quais são esses medicamentos?


Felipe: No Brasil a gente precisa lembrar que a gente realmente tem uma situação

muito privilegiada em comparação a outros países por ter um sistema de saúde

como o SUS, que é tão amplo e tão bem estabelecido, com profissionais tão

dedicados…então o Brasil é hoje considerado o maior sistema público de saúde no

mundo, em termos de cobertura de população sendo atendida, então realmente isso

coloca o Brasil num patamar assim muito relevante a nível Mundial.


E o que

acontece no SUS é sempre uma tentativa de trazer as melhores opções de

tratamento possíveis para salvar a vida das pessoas e para isso acontecer, claro

que os preços são uma questão central, porque quanto mais alto o custo, mais difícil

o SUS oferecer de forma universal o tratamento.


Então a gente vê por exemplo no

tratamento de HIV/Aids, a realidade hoje é bastante preocupante porque já faz muito

tempo que não são oferecidas novas opções de tratamento no Brasil. A última

revisão das diretrizes de tratamento foi em torno de 2016, 2017, já fazem cinco

anos. E no tratamento de AIDS o que acontece é que como ainda não existe uma

cura as pessoas têm que muitas vezes trocar de regime de tratamento porque já

gerou mais resistência ou então por efeitos adversos que estão sendo

causados…por vários motivos a pessoa muitas vezes tem que trocar de regime de

tratamento. E para pessoas que já estão em tratamento há muito tempo já vão

ficando poucas opções, poucos regimes que funcionariam.


Nesse sentido, tem

um novo medicamento em particular, que ainda não está disponível no Brasil,

chamado Ibalizumab, ele é um novo medicamento para HIV, é um anticorpo

monoclonal, um medicamento biológico e o preço dele provavelmente vai ser um

dos grandes desafios, porque nos Estados Unidos ele foi lançado há mais de 100

mil dólares o preço do tratamento anual.


A gente ainda não sabe qual seria o preço

oferecido para o Brasil mas sem dúvida vai ser um tratamento com preço

exorbitante para muitas pessoas que estão, a gente diz “um pouco no fim da linha

do tratamento de HIV”, seria uma opção de tratamento que garantiria aí uma opção

de tratamento que suprimiria a carga viral de uma maneira bastante efetiva, mas

realmente o preço pode ser algo que…o governo não está nem comentando a

possibilidade de trazer esse medicamento ainda. Em outras situações, a gente viu

que quando o preço do medicamento fica muito caro, às vezes ele demora para

chegar e as pessoas que precisam dele ficam sem. Ainda no campo do HIV/Aids,

tem uma combinação de tratamento também que é muito interessante que é o

cabotegravir com a rilpivirina. Esse é um tratamento de certa forma novo, no sentido

de que, ao invés de serem comprimidos diários que a pessoa tem que tomar quatro,

cinco, seis comprimidos todo dia, essa opção é injetável, que você toma uma vez

por mês.


Então, em alguns estudos, isso tem se demonstrado como algo que ajuda

na adesão das pessoas, porque muitas vezes tomar o medicamento diariamente,

você pode esquecer, tem um efeito colateral…então esse tratamento de longa

duração, como a gente chama, seria uma opção muito interessante para ser

implementada no Brasil, mas também nos Estados Unidos esse tratamento foi

lançado há mais de 50 mil dólares por paciente por ano, então é outro exemplo de

como o preço pode ser o que vai afastar as pessoas que precisam desse tratamento

do acesso ao tratamento. Isso pode significar realmente mortes que poderiam ser

evitadas.


A gente tem outros exemplos aqui…a gente sabe que, por exemplo, no

tratamento de câncer de mama, por exemplo, um dos mais prevalentes no Brasil,

existem opções também para pessoas que já tem resistência a outros tratamentos

que então chegando no Brasil com preço muito alto e as pessoas não estão

conseguindo ter acesso. Para diabetes a gente tem novas gerações de insulina que

tiveram um aumento de preço absurdo. Até em países como os Estados Unidos as

pessoas não estão conseguindo mais pagar pelas insulinas. Muita gente morrendo

de diabetes em países ricos, porque o preço da insulina está tão alto que está

sendo a consequência.


No caso da Hepatite C, a gente ainda tem uma questão de preço muito

alto para o tratamento que existe aqui no Brasil. A empresa que hoje oferece nosso

tratamento ela acabou criando uma posição também de controle do mercado então

o tratamento que o ministério compra a gente tem visto nos últimos pregões o preço

subindo…a gente já teve uma situação em 2015/2016 em que o tratamento da

hepatite C no Brasil era racionado, ou seja, só as pessoas que estavam no estado

mais grave podiam receber.


Tinham pessoas que tinham diagnóstico de Hepatite C

mas não podiam receber o tratamento porque ele era caro demais…o governo não

conseguiu comprar a quantidade suficiente para oferecer para todo mundo. Isso

mudou em 2018, mas com essas subidas de preço a gente sempre fica com receio

de voltar uma situação de racionamento do tratamento, que não tem nada a ver com

o princípio da universalidade que é o nosso Norte quando a gente fala de acesso a

tratamentos.

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