Desabastecimento de Medicamentos no Brasil
Paula Pimenta de Souza¹, Luísa Arueira Chaves²
¹Faculdade de Farmácia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; ²Faculdade de Farmácia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Macaé, Brasil
Embora o desabastecimento de medicamentos não seja um fenômeno novo, a frequência e a natureza dos desabastecimentos desses produtos nos últimos anos tem chamado a atenção. Por exemplo, nos últimos meses, notícias relacionadas ao risco de desabastecimento do medicamento bussulfano, necessário para pacientes que passarão por um transplante de medula óssea (TMO) tem circulado na mídia (Globo, 2021; CNN, 2021) e nas redes sociais na internet. O bussulfano é um antineoplásico utilizado no condicionamento pré-TMO, que consiste na realização de quimioterapia em altas doses com o objetivo de destruir a medula óssea doente para receber a nova medula no transplante. A única empresa farmacêutica que distribui o medicamento no Brasil é o Laboratório Pierre Fabre do Brasil, que emitiu uma nota em novembro de 2020, na qual informou que a distribuição poderia ser interrompida por questões operacionais da empresa. Essa nota causou pânico em pacientes e profissionais, pois o desabastecimento do medicamento poderia causar a interrupção da realização de TMO no país enquanto a situação não fosse resolvida.
Algumas instituições enviaram questionamento à Anvisa, entre elas a ABRALE (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia). Em resposta, a Anvisa comunicou que como a descontinuação de fabricação do bussulfano não tem relação com pendências regulatórias, a questão está fora da governança da agência (Anvisa, 2020). O comunicado reforça o quanto a sociedade pode ser prejudicada por decisões unilaterais das empresas farmacêuticas, uma vez que estas não são obrigadas a manter a produção de medicamentos caso não seja de seu interesse, independente do quanto um medicamento possa ser estratégico e importante para a sociedade.
A situação do bussulfano não é a primeira notícia relacionada a desabastecimento de medicamentos que chega à mídia. Entre os anos de 2014 e 2016, foi relatado o desabastecimento de penicilina benzatina, não apenas no Brasil, mas em diversos países (Nurse -Findlay et al., 2017). De acordo com o Ministério da Saúde, a causa apontada seria a falta global da matéria prima para sua produção (MS, 2015). Esse desabastecimento ocasionou dificuldades no tratamento de algumas doenças, mas principalmente no da sífilis congênita, doença em que a penicilina benzatina é a alternativa terapêutica mais eficaz e segura. Alguns estudos no país relacionaram inclusive um aumento na incidência da sífilis congênita por dificuldades no tratamento da doença, que é infectocontagiosa (Braga, 2020).
Frente à pandemia da Covid-19, a Sociedade Brasileira de Farmácia Hospitalar (SBRAFH) realizou um levantamento nacional sobre o abastecimento de medicamentos e produtos para a saúde durante o enfrentamento da pandemia. Noventa e três porcento (93%) dos profissionais que responderam à pesquisa afirmaram enfrentar problemas de desabastecimento com medicamentos e produtos para a saúde. Dentre estes, apenas 18% afirmaram que sempre conseguem superar essas faltas com o uso de alternativas terapêuticas (Sbrafh, 2020).
De acordo com os resultados da pesquisa, as maiores dificuldades de abastecimento envolveram medicamentos para sedação (64%), bloqueio neuromuscular (59%) e analgesia (37%) (Sbrafh, 2020). Esses medicamentos são amplamente usados em unidades de terapia intensiva (UTI), em especial durante o procedimento de intubação e no período em que o paciente permanece em ventilação mecânica. Nesse contexto da pandemia de Covid-19, em que existe alta demanda por leitos de UTI e grande número de pacientes com necessidade de procedimentos como intubação e sedação, a falta desses medicamentos pode comprometer ainda mais a capacidade de cuidado para esses pacientes.
Principais causas de desabastecimento
Conforme evidenciado nos 3 casos descritos acima, as causas do desabastecimento de medicamento podem ser diversas. Reis & Perini (2008) concluem em seu artigo que todos os elementos da cadeia logística farmacêutica podem estar diretamente envolvidos nessas causas, enquanto as instituições responsáveis pelo controle alfandegário, fiscal ou sanitário podem estar indiretamente envolvidas. Segundo Chaves e colaboradores (2019), o desabastecimento não está limitado a um medicamento, a um grupo específico de medicamentos ou sequer ao cenário nacional. A questão já estaria sendo debatida em arenas internacionais uma vez que é um problema que teria transcendido fronteiras.
Para a Organização Mundial da Saúde, a definição de desabastecimento pode estar relacionada à oferta ou à demanda. Em relação à oferta, o desabastecimento ocorreria quando a produção de um medicamento, produto de saúde ou vacina aprovado e registrado, considerado essencial, é insuficiente para atender a necessidade dos pacientes. Em relação à demanda, o desabastecimento ocorreria quando a demanda ultrapassa a oferta em qualquer ponto da cadeia de produção, o que causaria a falta do produto no ponto de dispensação ao paciente (OMS, 2016).
Segundo Chaves e colaboradores (2020), a pandemia da Covid-19 ilustrou as fragilidades globais da cadeia de suprimento farmacêutico, uma vez que a tensão tanto em aspectos da oferta como da demanda de diversos medicamentos e produtos para saúde foram evidenciadas nesse período. Houve aumento da demanda por insumos específicos sem capacidade de aumento da oferta em igual proporção, levando à disputa entre os países para aquisição dos produtos e risco de desabastecimento para aqueles que não vencerem a disputa.
Reis & Perini (2008) destacaram algumas causas de desabastecimento, entre elas pontuamos algumas:
A irregularidade no fornecimento de insumos farmacêuticos ou o fornecimento de insumos fora dos padrões de qualidade exigidos, que causariam interrupções no processo produtivo. A situação é agravada quando existe um número reduzido de fornecedores de matéria prima para vários fabricantes. Essa é uma fragilidade que atinge a grande maioria dos países, inclusive o Brasil, uma vez que a maioria dos insumos farmacêuticos Ativos (IFA) e intermediários de síntese são produzidos na China e na Índia. E a esmagadora maioria dos países depende do fornecimento desses insumos desses países. A falta da penicilina, descrita acima, ilustra essa causa;
A interrupção de fabricação ou a alteração na linha de produção, que ocorreria quando um fabricante exclusivo ou com maior domínio do mercado interromperia a produção ou reduziria seu nível de produção em virtude de definições econômico-financeiras, como no caso descrito do bussulfano;
O recolhimento de medicamentos, que pode ser por iniciativa do fabricante, ou por determinação da agência reguladora, no caso do Brasil, a Anvisa. Nos últimos anos o recolhimento de ranitidina pela presença da impureza N-nitrosodimetilamina (NDMA) aconteceu em diversos países. No Brasil, em 2020 foi proibida a comercialização, distribuição, fabricação, importação, manipulação e propaganda de todas as empresas, independentemente da natureza da atividade, de todos os lotes e de todas as apresentações do medicamento ranitidina;
O aumento inesperado na demanda por determinados medicamentos, que excederiam a capacidade de produção das empresas devido a novas indicações de medicamentos ou surto de doenças. A pandemia da Covid-19 seria um exemplo recente desta situação.
A cadeia logística de medicamentos é complexa, composta por diversas etapas que agem de maneira sincronizada para a garantia da disponibilidade de medicamentos no ponto de dispensação. Para que essa cadeia atue de maneira efetiva, é necessário o trabalho conjunto e sincronizado de diversos atores ao longo dessa etapa. Sendo assim, qualquer falha ou demora prolongada em qualquer uma dessas etapas podem acarretar um desabastecimento temporário ou prolongado no ponto de dispensação. Quando a natureza da causa do desabastecimento se encontra em uma situação relacionada a logística local, esse desabastecimento poderá ser pontual e regional, não afetando outras regiões do país ou até outros países. No entanto, quando esta causa está relacionada a fatores relacionados a produção do produto, esse desabastecimento pode ser sentido por diversos países ou regiões. Isso ocorre porque a produção de medicamentos tem uma característica global e concentrada em poucos países e unidades produtivas, especialmente quando se trata de produtos de baixo interesse comercial (o que não significa, necessariamente, baixo valor sanitário).
Sendo assim, diferentemente do que ocorria em meados do século XX, onde o desabastecimento era caracterizado por um problema local, relacionado a deficiências da cadeia logística de aquisição e distribuição desses produtos nos países, o que vemos agora, é um fenômeno de ordem global que afeta diversos países, independentemente do nível de organização de seu sistema de saúde ou até de sua renda. Portanto, embora tenha o mesmo nome, o problema é diferente e, assim, necessita de novas soluções para que o direito ao acesso aos medicamentos seja assegurado a todos que dele necessitam.
Referências Bibliográficas:
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Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/01/02/falta-de-medicamento-fundamental-para-o-transplante-de-medula-ossea-preocupa-pacientes.ghtml>.
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Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO). Desabastecimento de Bussulfano no Brasil: SBTMO e SOBOPE solicitam esclarecimentos à Anvisa. Disponível em: <https://sbtmo.org.br/saibamais/desabastecimento-de-bussulfano-no-brasil>.
Observação: Clique na imagem do boletim para acessar o PDF.
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