top of page

Obesidade e a COVID-19


A obesidade é uma doença crônica com etiologia multifatorial, resultante da interação de estilo de vida, genes e fatores emocionais (1). É atualmente considerada uma pandemia mundial que está associada a muitas comorbidades como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, apneia do sono, distúrbios respiratórios e neoplasias (2). É diagnosticada em adultos pelo cálculo do índice de massa corporal (IMC), dividindo-se o peso do paciente (em quilograma) pela sua altura (em metros) elevada ao quadrado. O IMC entre 25 e 29,9 Kg/m² define o sobrepeso, entre 30 e 34,9 Kg/m² a obesidade grau I, entre 35 e 39,9 Kg/m² a obesidade grau II e maior do que 40 Kg/m² a obesidade grau III (1). No Brasil, a prevalência da obesidade cresceu 67,8% nos últimos treze anos, saindo de 11,8% em 2006 para 19,8% em 2018. Mais da metade da população (55,7%) tem excesso de peso, sendo o aumento da prevalência maior nas faixas etárias de 18 a 24 anos (3), o que nos deixa apreensivos quanto ao mais novo problema de saúde pública no país.


No final de dezembro de 2019, um grupo de pacientes com pneumonia de origem desconhecida foi relatado pela primeira vez em Wuhan, China [4]. Em 7 de janeiro de 2020, o patógeno causador foi identificado como um novo coronavírus e a caracterização genômica e o desenvolvimento de um teste metodológico foi elaborado (5,6). Desde então, a doença do Coronavírus 2019 (COVID-19), causada por SARS-CoV-2, tomou o mundo e foi oficialmente declarada uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. As manifestações clínicas da COVID-19 variam de assintomáticas ou infecção leve a formas graves de doença com risco de vida (7). Relatórios iniciais da Ásia e Europa identificaram como fatores associados a piores desfechos da doença a idade avançada, o sexo masculino e condições médicas crônicas (diabetes, hipertensão, obesidade, doença arterial coronariana e insuficiência cardíaca) (8,9). Diversos estudos nos EUA, México e Brasil mostraram um aumento do número de óbitos em indivíduos com IMC elevado (10, 11, 12), sendo um estudo na cidade de Nova York o primeiro a demonstrar que o IMC > 35Kg/m² seria um fator independente de risco para a necessidade de oxigenioterapia e mortes hospitalares (10). O primeiro caso de COVID-19 no Brasil foi identificado em 25 de fevereiro de 2020 e desde então já foram registrados mais de 1 milhão de indivíduos infectados, com mais de 60000 óbitos, o que mostra uma taxa de mortalidade de 28,9 no Brasil (13).


De acordo com o observado até o momento, a obesidade vem se mostrando um preocupante fator de risco para a COVID-19 na sociedade moderna. Sua presença como fator de risco, independentemente da idade, sexo e outras comorbidades para a gravidade da infecção ainda não é bem esclarecida, porém algumas teorias são propostas de acordo com o que se sabe na literatura pela relação da obesidade em outras infecções pulmonares já existentes.


A obesidade está associada a uma ampla gama de resultados adversos à saúde. Para alguns, por exemplo a apneia do sono, a doença do refluxo esofagogástrico e a expansão do próprio tecido adiposo contribui diretamente para a infecção da COVID-19 (14) .


O SARS-CoV-2 tem alta afinidade pela enzima conversora da angiotensina humana 2 (ACE2), que demonstrou ser o receptor para a entrada do SARS-CoV-2 nas células hospedeiras (15). A ACE2 está expressa no tecido dos rins, coração e pulmões de forma diferente em pacientes saudáveis ​​comparado a pacientes infectados pelo coronavírus (16). Ela também está expressa no tecido adiposo, o que pode justificar uma vulnerabilidade à COVID-19. Vale ressaltar que não há uma diferença na expressão da ACE2 por adipócitos e células progenitoras adiposas entre indivíduos com obesidade e aqueles sem a doença (17). Porém, indivíduos com obesidade têm mais tecido adiposo e, portanto, um número aumentado de células que expressam ACE2 e, consequentemente, tem uma maior quantidade desta enzima comparado a indivíduos com peso normal (18).


Na obesidade, a resistência insulínica é um dos primeiros distúrbios metabólicos observados, e isso estaria relacionado a depósitos de gordura em outros tecidos (depósitos ectópicos) como os alvéolos, por exemplo, o que teria um papel crucial no desenvolvimento e gravidade da doença (19).

Pacientes gravemente doentes com COVID-19 apresentam altos níveis de marcadores inflamatórios como PCR e citocinas pró-inflamatórias circulantes (TNFα, IL6 e IL1β) (20). Sabendo-se que o aumento da inflamação contribui para um dano alveolar no pulmão, isso sugere uma rota potencial pela qual os fatores de risco metabólico (resistência insulínica) podem levar ao aumento da mortalidade por Covid-19 (14).


A expansão do tecido adiposo não apenas resulta na produção de citocinas inflamatórias, mas também altera o perfil dos hormônios secretados. Obesos apresentam níveis maiores de leptina e menores de adiponectina na circulação em relação à pessoas de peso normal. Alguns estudos associam altos níveis de leptina à inflamação pulmonar, apesar disso ainda não ser um consenso (21). Além disso, há evidências crescentes que sugerem que a adiponectina seria um agente anti-inflamatório (22). Em estudos com ratos deficientes de adiponectina observa-se uma inflamação da vasculatura pulmonar (23) e uma predisposição a lesão pulmonar aguda (24), sugerindo que a hipoadiponectinemia frequentemente observada na obesidade poderia facilitar uma resposta inflamatória exagerada direcionada aos capilares pulmonares. Além de ser mais baixa na obesidade e na maioria dos estados resistentes à insulina, é importante notar que os níveis de adiponectina foram relatados como significativamente mais baixos em muitos dos grupos "em risco" de COVID-19, por exemplo: Homens<Mulheres (25) e Sul-asiáticos < Brancos europeus (25,26). No entanto, deve-se notar que os níveis de adiponectina tendem a aumentar após os 70 anos de idade (27), e a velhice, é de longe, o maior fator de risco para a mortalidade por COVID-19. Desta forma, é possível que diferentes vias causais possam mediar o risco de idade vs obesidade na gravidade da COVID-19 (14).


Outro marcante ponto observado na pandemia de influenza H1N1 que se repete na COVID-19 é a extensão da microangiopatia capilar (doença vascular em microvasos) pulmonar que é considerável e quase universal em algumas séries de casos (28). Tal achado sugere que a COVID-19 pode levar a um estado de hipoperfusão alveolar (redução da oxigenação no alvéolo pulmonar) devido a uma angiopatia pulmonar microtrombótica. O achado frequente de níveis elevados de D-dímeros em grande parte dos pacientes hospitalizados é consistente com esse processo trombótico, assim como a ocorrência de trombose venosa e embolia pulmonar durante o curso da doença (29, 30). Além disso, a obesidade é um fator de risco já estabelecido para doenças trombóticas arteriais e venosas, com disfunção do endotélio, plaquetas, sistema fibrinolítico e na cascata de coagulação (31).


As características clínicas da pneumonia por COVID-19 ainda estão sendo definidas, mas em relatos iniciais de centros europeus, foi relatado um grande número de pacientes intubados em ventilação mecânica que preservavam a complacência (grau de extensão dos pulmões) e a aeração pulmonar, reforçando a ideia de que a hipóxia (baixa concentração de oxigênio) estaria sendo causada por disfunção microvascular (32, 33).


Salienta-se ainda, que o indivíduo obeso apresenta uma limitação física da expansão pulmonar devido à grande concentração de gordura no abdômen, o que estaria associada a uma má ventilação das bases pulmonares, resultando em uma menor saturação de oxigênio no sangue (14).


Desta forma, a obesidade mostra-se um grande fator de risco para COVID-19, não só por estar relacionada a outros fatores de risco (diabetes, hipertensão, problemas cardiorrespiratórios), mas também por uma questão intrínseca ao tecido adiposo que transforma o individuo em um ser inflamado e com tendências a tromboses. Apesar deste cenário, as teorias propostas nos dão esperança de que se melhorarmos a sensibilidade à insulina e reduzirmos o tecido adiposo reduziríamos o risco da infecção. Portanto, mesmo uma quantidade modesta de restrição calórica, combinada à atividade física e talvez um medicamento para sensibilização/redução da insulina, como a metformina, poderia fornecer uma maneira de reduzir o risco de morte para um grande número de pessoas obesas em risco para a COVID-19.


Referências Bibliográficas:

  1. Mancini, M. C. et al. Tratado de obesidade. Guanabara Koogan, 2015.

  2. World Health Organization. Obesity and overweight, 2020.

  3. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2013: Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico. 2014.

  4. Zhu Na et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. The New England Journal of Medicine, 2020.

  5. World Health Organization. Novel coronavirus – China. 2020. Disponível em: <https://www.who.int/csr/don/12-january-2020-novel-coronavirus-china/en/>

  6. Chan J. F. et al. Genomic characterization of the 2019 novel human-pathogenic coronavirus isolated from a patient with atypical pneumonia after visiting Wuhan. Emerging Microbes & Infections, 2020.

  7. Kalligeros M. et al. Association of Obesity with Disease Severity Among Patients with Coronavirus Disease 2019. Wiley Online Library, 2020.

  8. Zhou F. et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. The Lancet, 2020.

  9. Yancy C. W. COVID-19 and African Americans. Jama, 2020.

  10. Palaiodimos L. et al. Severe obesity, increasing age and male sex are independently associated with worse in-hospital outcomes, and higher in-hospital mortality, in a cohort of patients with COVID-19 in the Bronx, New York. Metabolism Clinical and Experimental, 2020.

  11. Hernández-Garduno E. Obesity is the comorbidity more strongly associated for Covid-19 in Mexico. A case-control study. Obesity Research & Clinical Practice, 2020.

  12. Souza W. M. et al. Epidemiological and clinical characteristics of the early phase of the COVID-19 epidemic in Brazil. 2020.

  13. Brasil. Painel Coronavírus, 2020. Disponível em: <https://covid.saude.gov.br/>

  14. Lockhart, S.M., O’Rahilly, S. When two pandemics meet: Why is obesity associated with increased COVID-19 mortality? Elsevier Public Health Emergency Collection, 2020.

  15. Zhou P. et al. A pneumonia outbreak associated with a new coronavirus of probable bat origin. Nature, 2020.

  16. HFSA/ACC/AHA Statement Addresses Concerns Re: Using RAAS Antagonists in COVID-19. American College of Cardiology, 2020.

  17. Pinheiro T. A. et al. Obesity and malnutrition similarly alter the renin-angiotensin system and inflammation in mice and human adipose. The Journal of Nutritional Biochemistry, 2017.

  18. Jia X. et al. Two things about COVID-19 Might Need Attention. Preprints, 2020.

  19. Reaven, G.M. Role of insulin resistance in human disease. American Diabetes Association, 1988.

  20. Chen, G. et al. Clinical and immunological features of severe and moderate coronavirus disease 2019. The Journal of Clinical Investigation, 2020.

  21. Finucane, F.M. et al. Correlation of the leptin:adiponectin ratio with measures of insulin resistance in non-diabetic individuals. Diabetologia, 2009.

  22. Scherer, P.E. The many secret lives of adipocytes: implications for diabetes. Diabetologia, 2019.

  23. Summer, R. et al. Adiponectin deficiency: a model of pulmonary hypertension associated with pulmonary vascular disease. American Journal of Physiology Lung Cellular and Molecular Physiology, 2009.

  24. Konter, J.M. et al. Adiponectin attenuates lipopolysaccharide-induced acute lung injury 437 through suppression of endothelial cell activation. The Journal of Immunology, 2012.

  25. Duncan, B.B. et al. Adiponectin and the development of type 2 diabetes: the atherosclerosis risk in communities study. Diabetes, 2004.

  26. Abate, N. et al. Adipose tissue metabolites and insulin resistance in nondiabetic Asian Indian men. The Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism, 2004.

  27. Cnop, M. et al. Relationship of adiponectin to body fat distribution, insulin sensitivity and plasma lipoproteins: evidence for independent roles of age and sex. Diabetologia, 2003.

  28. Carsana, L. et al. Pulmonary post-mortem findings in a large series of COVID-19 cases from Northern Italy. medRxiv, 2020.

  29. Connors, J. M.; Levy, J. H. COVID-19 and its implications for thrombosis and anticoagulation. Blood, 2020.

  30. Helms, J. et al. High risk of thrombosis in patients with severe SARS-CoV-2 infection: a multicenter prospective cohort study. Intensive Care Medicine, 2020.

  31. Vilahur, G.; Ben-Aicha, S.; Badimon, L. New insights into the role of adipose tissue in thrombosis. Cardiovascular Research, 2017.

  32. Gattinoni, L. et al. COVID-19 pneumonia: different respiratory treatments for different phenotypes? Intensive Care Medicine, 2020.

  33. Gattinoni, L. et al. COVID-19 Does Not Lead to a "Typical" Acute Respiratory Distress Syndrome. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, 2020

Observação: Clique na imagem do boletim para acessar o PDF.

Boletim Recente
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
Boletins Anteriores
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page