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Uso Medicinal da Cannabis


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A definição usual do termo preconceito traduz uma opinião ou sentimento concebido sem exame crítico ou reflexão mais profunda. A expressão também pode ser utilizada em relação a uma ideia, opinião ou sentimento desfavorável, formado sem conhecimento abalizado, ponderação ou razão que o justifique. Muitas vezes o preconceito traz como consequência um sentimento hostil, resultado da generalização apressada imposta em boa parte pelo meio em que vivemos. Não é raro o preconceito trazer como resultado a intolerância, assim como não é incomum existir, junto a ele, outro aspecto que o explica e muitas vezes favorece o seu crescimento: a desinformação.

Neste segundo número do Boletim do Observium - Observatório de Vigilância e Uso de Medicamentos da Faculdade de Farmácia da UFRJ, buscamos jogar luz sobre um tema - o uso medicinal da Cannabis (cânhamo ou maconha) - cujo debate na sociedade brasileira tem incorporado estas duas dimensões: o preconceito e a desinformação. O resultado desse "coquetel" nada científico tem impactado de forma trágica a vida de pacientes e familiares portadores de doenças graves e incapacitantes, exigindo das autoridades, comunidade científica e sociedade um aprofundamento da questão.

Brasil, você precisa falar seriamente sobre isso

Paula Pimenta de Souza e Guacira Corrêa Matos

Faculdade de Farmácia / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

No Brasil, a discussão sobre o uso medicinal da Cannabis e seus derivados intensificou-se nos últimos anos. Apesar disso, o País ainda tem uma legislação bastante conservadora a respeito do tema em relação a outros países.

Nos Estados Unidos da América (EUA) a discussão a esse respeito não é tão recente. Nos últimos 20 anos, de um total de cinquenta, 28 estados norte-americanos e o Distrito de Columbia regulamentaram o uso terapêutico da maconha e seus derivados. Apesar disso, o Drug Enforcement Administration ainda não reconhece usos legais permitidos. Frente a esse cenário, Bradford & Bradford (2017)1 realizaram um estudo para investigar se houve redução nos gastos com medicamentos sob prescrição financiados pelo Medicare Part D nos estados que regulamentaram o uso medicinal da maconha. Entretanto, a maioria da população atendida pelo programa não possuía mais de 65 anos e os resultados não foram conclusivos.

Assim, um novo estudo foi realizado com a população beneficiária constituída por pessoas de baixa renda de todos os grupos etários utilizando os dados do Medicaid. Inicialmente, foi feito um levantamento dos medicamentos sob prescrição usados no tratamento de nove condições para as quais há evidências de efetividade dos canabinóides (ansiedade, depressão, glaucoma, náusea, dor, psicose, epilepsia, distúrbios do sono e espasticidade). Em seguida, foram analisados os gastos reembolsados pelo Medicaid com os medicamentos usualmente prescritos para os tratamentos destas condições, entre 2007 e 2014.

Nos estados onde há legislação específica que permite o uso medicinal da Cannabis e derivados, a associação da redução com a existência da legislação foi estatisticamente significante para cinco das condições (dor, epilepsia, psicose, depressão e náusea) com reduções de 11 a 17%. A economia gerada estimada variou de US$ 260,8 a 475,8 milhões, o que equivale a 2% do gasto total do programa em 2014. Segundo os autores, somente em 2014, a economia ultrapassaria 1 bilhão de dólares, se todos os estados americanos autorizassem este uso. Entretanto, não foi possível calcular os gastos com a aquisição dos medicamentos à base de Cannabis, porque estes não são cobertos pelo Medicaid.

Outro estudo norte americano, realizado por Powell e colegas (2015)2, investigou se a existência de legislação que autoriza o uso medicinal da Cannabis resultou em redução dos agravos à saúde causados pelos analgésicos opióides prescritos para o alívio da dor crônica. Nos EUA, o uso abusivo de medicamentos e de drogas de abuso são a principal causa de morte atribuídas a lesões por causas externas no país. Em 2010, os analgésicos opióides responderam por 60% dessas mortes, superando muito as

- Diferentemente dos EUA, no Brasil os estados não têm autonomia para legislar sobre o uso medicinal da Cannabis. -

mortes por cocaína e heroína. Nos estados que possuem legislação específica para provisão do acesso à Cannabis e derivados para uso medicinal por meio de dispensários legalizados, houve redução no número de internações por dependência (17,1%) e de mortes (16%) atribuídas ao uso abusivo de analgésicos opióides, excluídos os casos criminais.

Diferentemente dos EUA, no Brasil os estados não têm autonomia para legislar sobre o uso medicinal da Cannabis. Entretanto, algumas modificações na legislação vêm acontecendo no País. De 2015 a 2016, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicou duas Resoluções de Diretoria Colegiada (RDC), nas quais foram definidos os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de canabidiol e outros canabinóides 3,4. Em janeiro de 2017, a Anvisa aprovou o registro no país do primeiro medicamento à base de Cannabis sativa, o Mevatyl® (tetraidrocanabinol (THC), 27 mg/ mL+ canabidiol (CBD), 25 mg/mL), registrado em outros países com o nome de Satyvex®, em forma farmacêutica solução oral (spray) e indicado para o tratamento da espasticidade moderada a grave relacionada à esclerose múltipla5.

Recentemente, a Cannabis sativa foi incluída na lista das Plantas Medicinais das Denominações Comuns Brasileiras (DCB)6. A esse respeito a Anvisa esclareceu em sua página eletrônica, que a inclusão não significa o reconhecimento da Cannabis como planta medicinal, mas apenas que tem potencial para a pesquisa das propriedades farmacológicas dos fitocanabinóides e para futuros pedidos de registro, bem como pode fundamentar pedidos de importação em caráter excepcional autorizados pela justiça. Apesar da minimização da importância pela agência reguladora, a inclusão nas DCB já significa um passo importante para a regulamentação da produção, registro e comercialização de medicamentos elaborados a partir dos princípios ativos extraídos de uma planta de uso terapêutico milenar pela humanidade. No Brasil e em outros países, o uso da Cannabis no preparo de medicamentos alopáticos e homeopáticos foi permitido até as primeiras décadas do século XX. Tanto assim, que na 1ª edição da Farmacopéia Brasileira (1929), constava a Cannabis (cânhamo), que só foi proibida a partir de 1938.

Neste cenário, que envolve pressões políticas, da comunidade científica e da população, estão em andamento na UFRJ projetos de pesquisa e extensão, relacionados ao uso medicinal da Cannabis e seus derivados canabinóides. Para falar a respeito do tema, o Observium entrevistou a coordenadora desses projetos, a Profa. Dra Virgínia Martins Carvalho, da Faculdade de Farmácia da UFRJ.

ENTREVISTA PROJETO FARMACANNABIS

Virgínia Martins Carvalho

“A aprovação do projeto e sua execução necessitam de um processo constante de desconstrução ideológica”

Observium - Como nasceu o projeto Farmacannabis?

Virgínia Carvalho - Como professora adjunta recém empossada na Faculdade de Farmácia na área de Toxicologia precisava estabelecer uma linha de pesquisa e extensão própria e, preferencialmente, diferente das linhas trabalhadas no mestrado e doutorado (toxicologia forense), que são linhas idealizadas pelo orientador. Minha formação em Toxicologia Social e Análises Toxicológicas e a participação em obra sobre aspectos sociais, clínicos e toxicológicos da Cannabis, organizada pelo Departamento de Toxicologia da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional da Colômbia (grupo com o qual colaboro), me estimulou a pesquisar o tema. Comecei a orientar Trabalhos de Conclusão de Curso sobre o tema e busquei parceiros na UFRJ pela afinidade acadêmicofilosófica. Participei do evento Maconha Medicinal promovido pela Fiocruz na Escola de Magistratura do RJ em meados de 2015 e busquei o Prof. João Menezes, neuroanatomista do Instituto de Ciências Biomédicas, ativista pela legalização da Cannabis, ligado aos movimentos sociais e que foi palestrante. No mesmo evento conheci a Margarete, presidente da APEPI (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal).

- Ninguém fazia ideia da concentração de canabinóides dos extratos e supunham a composição de THC (tetrahidrocanabinol) e CBD (canabidiol) apenas pelo efeito clínico, baseado na premissa que THC causa estímulo/euforia e CBD diminui a ansiedade e causa sonolência. -

Em janeiro de 2016, Prof. João Menezes me convidou a conhecer a Associação Brasileira para a Cannabis (ABRACannabis) que vinha fazendo um trabalho educacional com os pacientes ensinando técnicas de cultivo e preparação de extrato. A Margarete também era associada e pela aproximação dela junto com a APEPI e ao Abracannabis me aprofundei na realidade social dos pacientes em tratamento com Cannabis, a maioria crianças portadoras de epilepsia refratária. Associei-me como farmacêutica voluntária e conheci o Eduardo Faveret, médico neuropediatra, que atende diversas crianças da APEPI.

Nas reuniões semanais e oficinas de preparação de extrato na casa de pacientes, me dei conta que havia um universo de conhecimento empírico, mas sem metodologia científica e recursos experimentais para comprovar, compreender e transformar aquele conhecimento de cultivadores usuários, de mães e pais de pacientes e também do conhecimento clínico do médico. Ninguém fazia ideia das concentrações de canabinóides dos extratos e supunham a composição de THC (tetrahidrocanabinol) e CBD (canabidiol) apenas pelo efeito clínico, baseado na premissa que THC causa estímulo/euforia e CBD diminui a ansiedade e causa sonolência.

Todos, mães e pais de pacientes, pacientes, usuários sociais e médicos tinham o mesmo anseio, saber qual a concentração dos canabinóides nos extratos artesanais e importados (os importados são todos registrados como suplementos alimentares). Além disso, sempre me convidavam para acompanhar e supervisionar as oficinas de preparação de extrato, por ser farmacêutica. Além disso, várias mães ficam apreensivas por não saberem as interações medicamentosas ou alimentares e os efeitos adversos. A partir dessa experiência com as associações e do contato direto com os pacientes, cultivadores e usuários sociais/ recreacionais foi sendo idealizado o projeto.

Em meados de 2016, a Margarete, representando a APEPI, conseguiu uma reunião com o então presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, para levar a demanda de várias crianças que necessitam de extrato de Cannabis para controle de crises convulsivas. Eu, João Menezes e Eduardo Faveret fomos convidados, representando respectivamente, a UFRJ, a diretoria da Abracannabis e o Instituto Estadual do Cérebro-RJ. A partir dessa reunião foi constituído um grupo de trabalho (GT), do qual nós participamos junto com pesquisadores da Fiocruz. O GT tem como foco a produção nacional de um

- Várias mães ficam apreensivas por não saberem as interações medicamentosas ou alimentares e os efeitos adversos -

fitomedicamento à base de Cannabis, destinado ao tratamento da epilepsia.

Juntando minha necessidade de estabelecer uma linha de pesquisa e extensão na UFRJ, atender aos objetivos do GT da Fiocruz e cumprir minha missão como farmacêutica nasceu o Farmacannabis, projeto de extensão universitária que conta com diversos colaboradores docentes e discentes.

Observium - Quais os objetivos do Farmacannabis?

Virgínia Carvalho - O projeto tem como objetivos oferecer atenção farmacêutica aos pacientes em tratamento com Cannabis; determinar as concentrações de canabinóides em extratos artesanais e importados; dar suporte farmacêutico para o cultivo e a preparação de extratos medicinais de Cannabis;

- Os principais desafios são a proibição do uso da planta e o preconceito gerado. -

produzir material informativo e de educação e novos conhecimentos sobre a terapia com Cannabis.

Observium- Quais os desafios para a realização deste projeto no país, uma vez que a Cannabis não tem seu uso para fins medicinais autorizado no Brasil?

Virgínia Carvalho - Os principais desafios são a proibição do uso da planta e o preconceito gerado. A proibição torna os padrões de referência muito caros e a obtenção muito burocrática e difícil. A aprovação do projeto e sua execução necessitam de um processo constante de desconstrução ideológica.

Observium - Existem outras instituições envolvidas no projeto?

Virgínia Carvalho - Sim, a Fiocruz e as associações APEPI e ABRACannabis.

Observium - Qual o papel da UFRJ na pesquisa do uso medicinal da Cannabis? E como se dá o trabalho interinstitucional com a Fiocruz?

Virgínia Carvalho - Traçar o perfil dos pacientes e da farmacoterapia. Vamos determinar o que está sendo administrado e as respostas clínicas. Assim, serão obtidas informações prévias sobre doses utilizadas e respostas clínicas. Obteremos informações sobre as variedades de Cannabis que estão sendo utilizadas e os teores de canabinóides. Saberemos qual o rendimento médio em relação à quantidade de planta e produção de extrato.

O trabalho interinstitucional se dá pela minha participação no GT e é garantido pela carta de apoio que contribuiu para a aprovação do projeto na UFRJ. Atualmente, estão sendo estabelecidas parcerias específicas para análise de contaminantes.

Observium - Como o projeto pode contribuir para a segurança dos pacientes em uso de Cannabis no país?

Virgínia Carvalho – Vamos saber o que está sendo utilizado e investigar as reações adversas. Além disso, ao oferecer um ambiente para produção do extrato sob supervisão de farmacêutico, o paciente aprende a produzir seu extrato de maneira segura e padronizada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.Bradford AC, Bradford WD. Medical marijuana laws may be associated with a decline in the number of prescriptions for medicaid enrollees. Health Affairs.2017, 36(5):945-51.

2.Powell D, Pacula RL, Jacobson M. Do medical marijuana laws reduce addictions and deaths related to pain killers? NBER Working Paper No 21345. National Bureau of Economic Research, Cambridge. Julho 2015.

3.Brasil. Resolução da Diretoria Colegiada- RDC Nº 17 de 06 de maio de 2016. Define os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de Canabidiol em associação com outros canabinóides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.

4.Brasil. Resolução da Diretoria Colegiada- RDC Nº 128 de 02 de dezembro de 2016. Acrescentou ao Anexo I da RDC 17/2015 mais produtos à base de Canabidiol em associação com outros canabinóides.

5.Brasil. Anvisa [internet]. Registrado primeiro medicamento à base de Cannabis sativa. Disponível em : http://portal.anvisa.gov.br/noticias/-/asset_publisher/FXrpx9qY7FbU/content/agencia-aprova-primeiro-remedio-a-base-de-cannabis-sativa/219201/pop_up?_101_INSTANCE_FXrpx9qY7FbU_viewMode=print&_101_INSTANCE_FXrpx9qY7FbU_languageId=pt_BR Acesso em 07 de junho de 2017.

6.Brasil. Anvisa [internet]. Lista oficial de fármacos inclui Cannabis. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/rss/-/asset_publisher/Zk4q6UQCj9Pn/content/id/3401316 Acesso em 07 de junho de 2017.

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