top of page

Farmaceuticalização, internet e novas mídias: Observium entrevista sobre o uso de metilfenidato na e


Clique na imagem para acessar o .PDF

Em nosso terceiro boletim, publicado em outubro de 2017, iniciamos uma discussão a respeito de informações disponíveis nas redes sociais, blogs e páginas disponíveis na internet e em outros meios de comunicação. Essas informações têm a capacidade de influenciar a percepção da população a respeito de alguns processos de adoecimento e do uso de medicamentos, podendo modificar seu padrão de uso. Além do aumento do número de diagnósticos de algumas doenças, aumenta também o uso não terapêutico de alguns medicamentos a partir da iniciativa do usuário. Nesta edição pretendemos aprofundar esta discussão.

A medicalização e principalmente a farmaceuticalização são fenômenos debatidos na entrevista apresentada neste número. Por isso, trouxemos uma discussão desses conceitos a partir da apresentação breve de alguns artigos.

A medicalização é um conceito mais antigo que a farmaceuticalização, e seria o processo por meio do

qual problemas ou questões do corpo e da vida, até

então entendidos como não-médicos, passam a ser definidos e tratados como problemas médicos, como doenças ou transtornos (Conrad 1992). Neste sentido, a figura do médico e seus saberes profissionais dominariam o processo. Mais recentemente, alguns autores passaram a sugerir que existe um outro fenômeno que confere centralidade ao medicamento, como vetor fundamental do entendimento e encaminhamento de problemas, e à indústria farmacêutica, como agente mais influente. Esse processo seria a farmaceuticalização.

John Abraham define a farmaceuticalização como o processo a partir do qual médicos ou pacientes passam a considerar que as condições sociais, de comportamento ou do corpo necessitam de medicamentos. Para o autor, a farmaceuticalização seria um mecanismo que fornece à indústria farmacêutica oportunidade de intervenção (Abraham 2009). Já Williams e colegas definem a farmaceuticalização como a transformação das condições humanas, capacidades ou habilidades em questões que necessitam de tratamento ou melhoria através do uso de medicamentos (Williams 2008).

Os conceitos de medicalização e farmaceuticalização se sobrepõem em parte, o que gera debate na literatura. Alguns autores sugerem que a medicalização incluiria o processo de farmaceuticalização. Segundo Conrad, a indústria farmacêutica e o uso de medicamentos são atores que ganharam força no processo de medicalização, que deixou de centrar-se apenas na figura do médico (Conrad 2005). Assim, para o autor, os processos se misturam e não configuram fenômenos ou conceitos separados.

Williams e colegas (2008) e Abraham (2010) discordam e sugerem que apesar de existir uma sobreposição dos conceitos, em parte a farmaceuticalização ultrapassa o conceito de medicalização em si. Segundo Abraham, uma vez que o aumento do uso de medicamentos afeta a farmaceuticalização, mas não necessariamente a medicalização, que contempla aspectos da vida que não estavam sob jurisdição médica e passam a ser considerados problemas médicos, os fenômenos seriam diferentes. Para o autor, a farmaceuticalização pode crescer sem o crescimento da medicalização, uma vez que se nota aumento do uso de medicamentos no tratamento de condições médicas já estabelecidas, o que não envolve a transformação de problemas não-médicos em médicos (Abraham 2010). Williams e colegas (2011) afirmam que a farmaceuticalização ultrapassa o uso de medicamentos por médicos ou pacientes para “tratamento” e inclui seu uso para outros propósitos não regulados pela autoridade médica. Assim, os autores defendem que o conceito de farmaceuticalização é necessário, pois o fenômeno empírico a que ele se refere não seria adequadamente explicado pela medicalização (Abraham 2010, Williams 2011).

O Observium entrevistou os pesquisadores Ângela Esher e Tiago Coutinho, do Departamento de Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Fiocruz). Os entrevistados coordenaram uma pesquisa, sob supervisão de Claudia Osorio-de-Castro, que objetivou caracterizar as informações de blogs e redes sociais sobre o uso de metilfenidato (Ritalina ®) em crianças e jovens com ou sem diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção/ Hiperatividade (TDA/H). As atividades da pesquisa tiveram início em 2014. Em seu estudo, os pesquisadores discutiram questões como a medicalização da sociedade e a farmaceuticalização. Confiram a entrevista a seguir.

Paula Pimenta e Thiago Azeredo

Entrevista

Ângela Esher e Tiago Coutinho

Observium: Na pesquisa da qual faz parte, optou-se pelo uso do termo farmaceuticalização. Qual a diferença entre este termo e o mais comumente difundido medicalização?

Ângela Esher e Tiago Coutinho: O termo original do inglês pharmaceuticalization é definido como um processo no qual ocorre a transformação das condições humanas, recursos e capacidades em oportunidades de intervenção farmacêutica. A ênfase é colocada no medicamento mas não podemos perder de vista as condições sócio-culturais que impulsionam este consumo. Este processo, muitas vezes, ultrapassa os domínios médicos e abrange pessoas saudáveis que se tornam usuárias e até dependentes de medicamentos sem uma justificativa médica para tal.

Estes processos potencialmente vão muito além dos domínios médicos ou medicalizados para abranger outros usos não-médicos para estilo de vida, aumento ou aperfeiçoamento de performance (entre pessoas 'saudáveis'). Já a medicalização ocorre quando um problema passa a ser definido em termos médicos, descrito a partir da linguagem específica, entendido através de uma racionalidade própria e tratado por diversas intervenções médicas que podem, ou não, incluir consumo de um medicamento. O conceito de ”farmaceuticalização” surge quando o medicamento passa a dominar o fenômeno. Há autores que mostram que quando o objeto de análise é o medicamento, o conceito de farmaceuticalização permitirá compreender suas diferentes inserções na sociedade, que podem ocorrer na ausência de medicalização ou de envolvimento do profissional médico.

Observium: A farmaceuticalização ocorre com todos os medicamentos ou tem se destacado em grupos específicos? Caso destaquese em grupos específicos, qual(is) e porquê?

Ângela Esher e Tiago Coutinho: A farmaceuticalização tem se destacado entre os medicamentos relacionados ao estilo de vida, ou em inglês, “lifestyle drugs” e entre os nootrópicos. Alguns exemplos de medicamentos que se destacam nesse processo são os usados no tratamento da ansiedade, desempenho sexual de homens e mulheres, e emagrecimento.

O conceito de nootrópico surgiu na década de 1970, com o medicamento piracetam. Inclui psicofármacos que seriam capazes de expandir principalmente as funções cognitivas (Giurgea C, 1982). Além do seu uso terapêutico em situações específicas, o uso de nootrópicos como o metilfenidato (Ritalina®) por pessoas saudáveis tem se mostrado crescente no mundo para aumento da cognição em situações competitivas, como por exemplo o meio acadêmico e o mercado corporativo (Cakic, 2009, Batistela, 2016).

O uso dos nootrópicos por pessoas saudáveis possibilita que eles também possam ser considerados medicamentos de estilo de vida, ou “lifestyle drugs”. Esses seriam os medicamentos tomados por pessoas saudáveis para aumentar seu bem-estar ou qualidade de vida, como hormônios, melhoradores de performance cerebral, entre outros. Comumente estão relacionados com a manutenção da juventude, beleza ou potência (Harth et al, 2008). De um modo geral o uso que se faz de determinado medicamento pode torná-lo um medicamento de estilo de vida em uma situação específica.

Observium: Qual o papel das redes sociais nesse processo?

Ângela Esher e Tiago Coutinho: Em nosso artigo (Coutinho, Esher & Osorio-de Castro 2017), falamos das “novas mídias”, isto é, meios de comunicação que têm como base de troca de informações a internet. Essas “novas mídias”, representadas por blogs, redes profissionais, redes acadêmicas, destacando-se as redes sociais, constituem importantes canais de observação dos desdobramentos do processo de farmaceuticalização, que se dá tanto pela facilitação ao acesso à informação, como ao ‘’produto’’ medicamento, sem mediadores, deixando de lado a tradicional relação médico-paciente.

Enquanto os usuários de redes sociais compartilham um conteúdo, escrevem uma mensagem para um amigo ou alteram os dados de seu perfil, eles, ao mesmo tempo, visitam páginas, engajam-se em grupos de discussões, debates, fornecendo uma grande quantidade de dados que são armazenados pelo provedor da rede social. O grande sucesso alcançado pela rede social Facebook, por exemplo, impulsionou, nos últimos anos, o desenvolvimento de diversas ferramentas analíticas de extração e de visualização do conteúdo produzido. Essas ferramentas possibilitam traçar o conjunto de relações estabelecido por um determinado ponto da rede, que tenha como foco qualquer tema específico. No cenário da farmaceuticalização, pode-se focar uma enfermidade ou o uso de medicamento – o que também favorece a pesquisa e a construção de conhecimento sobre o fenômeno.

Observium: Quais as principais características dos espaços virtuais por onde circulam informações a respeito do metilfenidato? que participantes se destacam nesses espaços e como fazem uso deles?

Ângela Esher e Tiago Coutinho: Por meio do mapeamento das redes sociais que selecionamos foi possível encontrar postagens relacionas aos critérios e formas para obter um diagnóstico, aquisição e utilização de medicamentos e compartilhamento de informações sobre a vivência com incômodos gerados pelos sintomas. Podemos destacar a participação de profissionais com diversas formações envolvidos nos tratamentos; responsáveis por crianças e jovens com TDAH; pessoas que se identificam com sintomas mas não necessariamente estão diagnosticadas.

Observium: Foi possível identificar seus interesses?

Ângela Esher e Tiago Coutinho: A disputa que acontece no campo acadêmico, sobre o diagnóstico do TDA/H, aparece da mesma forma nas publicações com instituições representadas por páginas, grupos e seus seguidores. De um lado, há a defesa da importância do diagnóstico que é realizado por meio de avaliação clínica, estudos psicométricos e que poucas vezes, por sua fragilidade, utiliza marcadores de base biológica e de outro lado, há aqueles que argumentam que o modelo atual busca transformar características pessoais em transtorno e isso impede que essas pessoas sejam sujeitos de sua própria história.

Observium: Sobre os usos desse medicamento, que justificativas ou motivações para o uso são identificáveis? (usos diferenciados da substancia)

Ângela Esher e Tiago Coutinho: No caso do metilfenidato encontramos o uso terapêutico para o qual ele foi desenvolvido, para transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e também uso offlabel (não descrito em bula), para fins de melhoramento cognitivo. Foi com este segundo uso que o metilfenidato ficou conhecido como a droga da Inteligência (ou a droga dos concursos ou ainda do Currículo Lattes). Em diversos grupos e páginas do Facebook observou-se a propagação de informações sobre o consumo, a aquisição, a mistura com outras substâncias e vários outros temas que remetiam diretamente a este consumo offlabel.

Observium: Como a farmaceuticalização conflita com a promoção do uso racional de medicamentos? Que estratégias podem ser usadas para diminuir esse impacto?

Ângela Esher e Tiago Coutinho: O crescimento excessivo no uso de medicamentos em muitos países nos possibilita enxergar fortes evidências de „Farmaceuticalização‟. O conflito é intenso quando investigamos e levantamos diversas formas de utilização, que vão além dos domínios médicos ou medicalizados para abranger outros usos, não médicos para estilo de vida, emagrecimento, melhoramento cognitivo ou de performance sexual entre pessoas ’’saudáveis’’.

Os antibióticos usados de forma inadequada também representam formas de farmaceuticalização e se configuram como uma grande ameaça no futuro.

Entre as estratégias para diminuir esse impacto:

- Regulação por meio das redes sociais já que os influenciadores digitais são importantes atores nesse contexto e na maioria das vezes não estão ligados a um conselho profissional.

- Aumentar o número de campanhas informativas sobre uso racional e sobre uso apropriado de medicamentos.

- Trabalho em sala de aula, com alunos de graduação, também é uma alternativa.

Observium: Qual o papel dos ambientes digitais na difusão de informações e como o conceito de uso racional de medicamentos se relaciona a este fenômeno?

Ângela Esher e Tiago Coutinho: Esta relação é um bom tema para estudos futuros. Acho que nosso artigo “Uso racional de medicamentos, farmaceuticalização e usos do metilfenidato” (Esher & Coutinho 2017) dá pistas para investigações que incluam aumento de informações sobre medicamentos e desejo de usar medicamentos para enfrentar os desafios diários da vida que geram incômodos, dores e muitas vezes sofrimento.

O grande desafio para o futuro é tentar formular programas que levem em consideração não somente o uso racional, mas as diferentes racionalidades que surgem quando a informação fica mais democrática ao alcance de todos. A Internet e mais especificamente as redes sociais impulsionam e diversificam o consumo de medicamento provocando a criação de diversas racionalidades que nos impulsionam a pensar novas leituras para conceitos tão consagrados como o de uso racional de medicamentos. Pensar essas novas racionalidades é um grande desafio que teremos pela frente.

Abraham J. Partial Progress: Governing the Pharmaceutical Industry and the NHS, 1948–2008. J Health Polit Policy Law. 2009; 34: 931-77.

Abraham J. Pharmaceuticalization of society in context: theoretical, empirical and health dimensions. Sociology. 2010; 44: 603–22.

Batistela S, Bueno OFA, Vaz LJ, Galduróz JCF. Methylphenidate as a cognitive enhancer in healthy young people. Dement Neuropsychol. 2016;10(2): 134-42.

Cakic V. Smart drugs for cognitive enhancement: ethical and pragmatic considerations in the era of cosmetic neurology. J Med Ethics. 2009; 35(10):611-5.

Conrad P. Medicalization and Social Control. Annual Review of Sociology. 1992; 18:209–32.

Conrad P. The Shifting Engines of Medicalization. J Health Soc Behav. 2005; 46: 3–14.

Coutinho TC, Esher AF, Osorio-de-Castro CGS. Mapeando espaços virtuais de informação sobre TDA/H e usos do metilfenidato. Physis. 2017: 27(3): 749-69.

Esher A, Coutinho T. Uso racional de medicamentos, farmaceuticalização e usos do metilfenidato. Ciênc. saúde coletiva[online]. 2017: 22(8): 2571-80.

Giurgea CE. The nootropic concept and its prospective implications. Drug Dev Res. 1982; 2:441 –6.

Hart W, Seikowski K, Hermes B; Gieler U. Lifestyle drugs in medicine. Wien Med Wochenschr. 2008; 158(3-4):110-5

Williams SJ, Martin P, Gabe J. Evolving sociological analyses of „Pharmaceuticalisation‟: a reply to Abraham. Sociol Health Illn. 2011; 33(5):729- 30.

Williams J. Gabe and P. Davis (eds). Pharmaceuticals and Society. Chichester: Wiley-Blackwell; 2008.

Williams SJ, Seale S, Boden S, Lowe P, Lynn D. Chapter, Waking up to Sleepiness; p. 25–40.

Observação: Clique na imagem do boletim para acessar o .PDF.

Boletim Recente
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
Boletins Anteriores
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page