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Farmaceuticalização, internet e novas mídias: Observium entrevista sobre o uso de metilfenidato na e

O Observium entrevistou os pesquisadores Ângela Esher e Tiago Coutinho, do Departamento de Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Fiocruz). Os entrevistados coordenaram uma pesquisa, sob supervisão de Claudia Osorio-de-Castro, que objetivou caracterizar as informações de blogs e redes sociais sobre o uso de metilfenidato (Ritalina ®) em crianças e jovens com ou sem diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção/ Hiperatividade (TDA/H). As atividades da pesquisa tiveram início em 2014. Em seu estudo, os pesquisadores discutiram questões como a medicalização da sociedade e a farmaceuticalização. Confiram a entrevista a seguir.


Observium: Na pesquisa da qual faz parte, optou-se pelo uso do termo farmaceuticalização. Qual a diferença entre este termo e o mais comumente difundido medicalização?


Ângela Esher e Tiago Coutinho: O termo original do inglês pharmaceuticalization é definido como um processo no qual ocorre a transformação das condições humanas, recursos e capacidades em oportunidades de intervenção farmacêutica. A ênfase é colocada no medicamento mas não podemos perder de vista as condições sócio-culturais que impulsionam este consumo. Este processo, muitas vezes, ultrapassa os domínios médicos e abrange pessoas saudáveis que se tornam usuárias e até dependentes de medicamentos sem uma justificativa médica para tal. Estes processos potencialmente vão muito além dos domínios médicos ou medicalizados para abranger outros usos não-médicos para estilo de vida, aumento ou aperfeiçoamento de performance (entre pessoas 'saudáveis'). Já a medicalização ocorre quando um problema passa a ser definido em termos médicos, descrito a partir da linguagem específica, entendido através de uma racionalidade própria e tratado por diversas intervenções médicas que podem, ou não, incluir consumo de um medicamento. O conceito de ”farmaceuticalização” surge quando o medicamento passa a dominar o fenômeno. Há autores que mostram que quando o objeto de análise é o medicamento, o conceito de farmaceuticalização permitirá compreender suas diferentes inserções na sociedade, que podem ocorrer na ausência de medicalização ou de envolvimento do profissional médico.


Observium: A farmaceuticalização ocorre com todos os medicamentos ou tem se destacado em grupos específicos? Caso destaque-se em grupos específicos, qual(is) e porquê?


Ângela Esher e Tiago Coutinho: A farmaceuticalização tem se destacado entre os medicamentos relacionados ao estilo de vida, ou em inglês, “lifestyle drugs” e entre os nootrópicos. Alguns exemplos de medicamentos que se destacam nesse processo são os usados no tratamento da ansiedade, desempenho sexual de homens e mulheres, e emagrecimento.


Observium: Qual o papel das redes sociais nesse processo?


Ângela Esher e Tiago Coutinho: Em nosso artigo (Coutinho, Esher & Osorio-de Castro 2017), falamos das “novas mídias”, isto é, meios de comunicação que têm como base de troca de informações a internet. Essas “novas mídias”, representadas por blogs, redes profissionais, redes acadêmicas, destacando-se as redes sociais, constituem importantes canais de observação dos desdobramentos do processo de farmaceuticalização, que se dá tanto pela facilitação ao acesso à informação, como ao produto‟ medicamento, sem mediadores, deixando de lado a tradicional relação médico-paciente. Enquanto os usuários de redes sociais compartilham um conteúdo, escrevem uma mensagem para um amigo ou alteram os dados de seu perfil, eles, ao mesmo tempo, visitam páginas, engajam -se em grupos de discussões, debates, fornecendo uma grande quantidade de dados que são armazenados pelo provedor da rede social. O grande sucesso alcançado pela rede social Facebook, por exemplo, impulsionou, nos últimos anos, o desenvolvimento de diversas ferramentas analíticas de extração e de visualização do conteúdo produzido. Essas ferramentas possibilitam traçar o conjunto de relações estabelecido por um determinado ponto da rede, que tenha como foco qualquer tema específico. No cenário da farmaceuticalização, pode-se focar uma enfermidade ou o uso de medicamento – o que também favorece a pesquisa e a construção de conhecimento sobre o fenômeno.


Observium: Quais as principais características dos espaços virtuais por onde circulam informações a respeito do metilfenidato? que participantes se destacam nesses espaços e como fazem uso deles?


Ângela Esher e Tiago Coutinho: Por meio do mapeamento das redes sociais que selecionamos foi possível encontrar postagens relacionas aos critérios e formas para obter um diagnóstico, aquisição e utilização de medicamentos e compartilhamento de informações sobre a vivência com incômodos gerados pelos sintomas. Podemos destacar a participação de profissionais com diversas formações envolvidos nos tratamentos; responsáveis por crianças e jovens com TDAH; pessoas que se identificam com sintomas mas não necessariamente estão diagnosticadas.


Observium: Foi possível identificar seus interesses?


Ângela Esher e Tiago Coutinho: A disputa que acontece no campo acadêmico, sobre o diagnóstico do TDA/H, aparece da mesma forma nas publicações com instituições representadas por páginas, grupos e seus seguidores. De um lado, há a defesa da importância do diagnóstico que é realizado por meio de avaliação clínica, estudos psicométricos e que poucas vezes, por sua fragilidade, utiliza marcadores de base biológica e de outro lado, há aqueles que argumentam que o modelo atual busca transformar características pessoais em transtorno e isso impede que essas pessoas sejam sujeitos de sua própria história.


Observium: Sobre os usos desse medicamento, que justificativas ou motivações para o uso são identificáveis? (usos diferenciados da substancia)


Ângela Esher e Tiago Coutinho: No caso do metilfenidato encontramos o uso terapêutico para o qual ele foi desenvolvido, para transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e também uso offlabel (não descrito em bula), para fins de melhoramento cognitivo. Foi com este segundo uso que o metilfenidato ficou conhecido como a droga da Inteligência (ou a droga dos concursos ou ainda do Currículo Lattes). Em diversos grupos e páginas do Facebook observou -se a propagação de informações sobre o consumo, a aquisição, a mistura com outras substâncias e vários outros temas que remetiam diretamente a este consumo offlabel.


Observium: Como a farmaceuticalização conflita com a promoção do uso racional de medicamentos? Que estratégias podem ser usadas para diminuir esse impacto?


Ângela Esher e Tiago Coutinho: O crescimento excessivo no uso de medicamentos em muitos países nos possibilita enxergar fortes evidências de "Farmaceuticalização‟. O conflito é intenso quando investigamos e levantamos diversas formas de utilização, que vão além dos domínios médicos ou medicalizados para abranger outros usos, não médicos para estilo de vida, emagrecimento, melhoramento cognitivo ou de performance sexual entre pessoas "saudáveis‟. Os antibióticos usados de forma inadequada também representam formas de farmaceuticalização e se configuram como uma grande ameaça no futuro. Entre as estratégias para diminuir esse impacto: - Regulação por meio das redes sociais já que os influenciadores digitais são importantes atores nesse contexto e na maioria das vezes não estão ligados a um conselho profissional. - Aumentar o número de campanhas informativas sobre uso racional e sobre uso apropriado de medicamentos. - Trabalho em sala de aula, com alunos de graduação, também é uma alternativa.


Observium: Qual o papel dos ambientes digitais na difusão de informações e como o conceito de uso racional de medicamentos se relaciona a este fenômeno?


Ângela Esher e Tiago Coutinho: Esta relação é um bom tema para estudos futuros. Acho que nosso artigo “Uso racional de medicamentos, farmaceuticalização e usos do metilfenidato” (Esher & Coutinho 2017) dá pistas para investigações que incluam aumento de informações sobre medicamentos e desejo de usar medicamentos para enfrentar os desafios diários da vida que geram incômodos, dores e muitas vezes sofrimento. O grande desafio para o futuro é tentar formular programas que levem em consideração não somente o uso racional, mas as diferentes racionalidades que surgem quando a informação fica mais democrática ao alcance de todos. A Internet e mais especificamente as redes sociais impulsionam e diversificam o consumo de medicamento provocando a criação de diversas racionalidades que nos impulsionam a pensar novas leituras para conceitos tão consagrados como o de uso racional de medicamentos. Pensar essas novas racionalidades é um grande desafio que teremos pela frente.




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